"Causos" da estrada: Nossos queridos velhos
O tempo passa e muitas vezes a visão e os reflexos nos traem. São coisas da vida.
Por Adilson
Por Adilson
Mário Sérgio Figueredo
Nossa turma de motoqueiros gostava muito de andar de moto num bairro aqui de Curitiba chamado Guabirotuba que nos agradava por ter um relevo bem irregular, cheio de morros e conseqüentemente, subidas bem íngremes.
Como o relevo obrigava as ruas a serpentear, num determinado lugar a prefeitura construiu uma grande escadaria de aproximadamente 100 metros, bem íngreme, que ligava a parte alta do bairro com a parte baixa.
Essa escadaria tinha nas suas bordas duas faixas de paralelepípedos, de 1 metro, planas e no centro os degraus. A gente fazia a festa subindo e descendo inúmeras vezes e até arriscando a descer pelos degraus. Vivíamos lá nos divertindo.
Num desses passeios, resolvi ir do ponto alto da escada até a parte baixa, pela rua, que fazia um “U” bem longo. Iniciei meu trajeto e já na primeira perna do “U” vinha, em sentido contrário, uma Brasília azul conduzida por um senhor septuagenário.
Quando estávamos a poucos metros um do outro ele bruscamente cortou a minha frente, sem dar sinal, para entrar na sua garagem. Freei o que deu, mas como era uma descida acentuada, piso de paralelepípedo e para piorar ainda mais havia areia que se desprende das junções das pedras, não deu outra, entrei com tudo na porta do passageiro, me projetando sobre o carro.
Apesar de estar com o capacete fechado ainda bati com o queixo na canaleta da Brasília, sofrendo um grande e profundo corte que precisou de alguns pontos e deixou-me uma bela cicatriz de recordação. Com a moto os estragos foram relevantes, entortando a roda e bengalas, além de inutilizar o pára-lama e quebrar o farol e pisca de um lado.
Paramos, meu queixo já sangrava cântaros e o senhor veio me esculachar. Incrível que mesmo tendo feito uma manobra totalmente irregular, ele ainda achava que estava certo. Como estávamos na frente da casa dele, apareceu filho, cunhado, tia, sobrinha, papagaio e até o cachorro de estimação da família.
Fiquei mais de uma hora, segurando uma flanela amarela no queixo para estancar o sangue, tentando convencer aquele senhor de que ele estava errado, sendo até ajudado por um dos seus filhos, mas ninguém conseguiu convencê-lo a fazer algum tipo de acordo e o jeito foi chamar o plantão de acidentes do Detran para registrar a ocorrência e, dessa forma, me garantir pra enfrentar as vias judiciais. Depois de toda essa burocracia é que fui até o pronto-socorro para costurar meu queixo. Imagine o suplício para quem tem pavor de agulha de injeção.
Naquela época, uma vez registrada a ocorrência, era marcada uma data em que os condutores envolvidos no acidente eram convocados para participar do julgamento do acidente, que era realizado por uma comissão oficialmente designada pelo Detran.
A comissão era constituída por três integrantes e funcionava como se fosse um tribunal, ou seja, a comissão num balcão mais elevado e os réus sentados em cadeiras à frente.
Nessa sessão a comissão julgava o croquis e os relatos coletados pelo plantão de trânsito que atendeu à ocorrência, ouvia os condutores e na mesma sessão apontava o culpado pelo acidente, indicando quem teria o ônus do ressarcimento. Esse sistema era ótimo na época, mas inviável nos dias de hoje devido ao número de ocorrências.
Surpresa minha foi ver como presidente dessa comissão o Sr. Zanchi, dono da concessionária onde ele pessoalmente havia me vendido a moto do acidente. Deixo claro que isso não teve nenhuma influência no resultado do julgamento, os fatos eram muito claros e apontavam a culpa para o senhor que conduzia a Brasília.
Após o julgamento, como esperado, aquele senhor foi apontado como causador do acidente, resultado que foi questionado veementemente. O senhor não se conformava e passou a ofender a comissão, acalmando-se somente após ser ameaçado de prisão por desacato.
Mais calmo finalmente ele consentiu em ressarcir-me das despesas que tive para consertar minha moto, fazendo dois cheques para 30 e 60 dias, que apesar da inflação galopante da época, considerei ainda um bom negócio, pois consegui recuperar meu prejuízo quase totalmente. Depois disso, nunca mais o vi, apesar de continuarmos nossos passeios naquele bairro por muito tempo.
O que mais marcou desse episódio é que, a despeito de todos os fatos, aquele senhor, em momento algum assumiu sua culpa. Notava-se que não havia má fé, ele tinha certeza que não havia feito nada de errado e até mesmo depois do julgamento e ressarcimento ainda mantinha a convicção de que estava sendo injustiçado.
Sua capacidade de julgamento o traíra, não o deixara perceber que a sua visão havia falhado ao não ver a moto que trafegava em sentido contrário. Pior do que a vista é a capacidade de discernimento das coisas falhar, provando que já havia passado da hora dele ter abandonado a condução de veículos.
Acredito que aquela experiência foi determinante para convencer meu pai, que hoje tem 77 anos, a parar de dirigir, antes que as limitações impostas pela idade viessem a provocar algum acidente sério.
Há quase dois anos que ele aposentou a CNH. O caso dele era crítico, pois dirigia mais em estradas do que em trânsito urbano, e por isso, qualquer acidente teria conseqüências mais sérias devido à velocidade mais elevada. Claro que outras providências tiveram que ser tomadas. O trouxemos com minha mãe pra morar na nossa cidade, onde pudéssemos estar mais presentes e dar a eles um cuidado mais permanente e merecido.
Nós, filhos, temos a responsabilidade e a obrigação de proteger nossos velhos, intercedendo quando a situação exigir, coisa que a família daquele senhor da Brasília deixou de fazer no momento certo.
O “motonauta” Mário Sérgio Figueredo participou do Moto Repórter, canal de jornalismo participativo do MOTO.com.br. Para mandar sua notícia, clique aqui.
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