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Viagens

De moto fora do Brasil: Quando e onde tudo começou

19 de August de 2016

Raphael Karan

O que fazer quando subitamente a empresa lhe comunica – está demitido ?! Era o ano 1993 e foi exatamente o que aconteceu comigo. Durante os anos anteriores havia juntado algumas economias e vi neste momento a oportunidade de realizar algo que eu sonhava – viajar de moto fora do Brasil .

Na ocasião, havia duas amigas que estavam morando em Roma e por comodidade decidi voar para lá.  A moto foi comprada zero km, pois na época as leis não permitiam comprar uma usada , porém me dispensavam do pagamento de alguns impostos italianos, fazendo com que seu preço ficasse a metade do valor que uma moto semelhante era comercializada no Brasil. Possuía uma placa diferenciada que mostrava dois grandes “ EE ”, que significavam “ estero excursionista ” (“ viajante estrangeiro ”). Isto fazia com que, muitas pessoas ao vê-la, me perguntassem de onde eu vinha, para onde ia, ou simplesmente que placa era aquela.

Passaram vários dias até que eu pudesse pegá-la. Idas e vindas à embaixada do Brasil atrás de declarações e atestados, entraves na liberação dos documentos nas repartições aduaneiras, atrasaram a partida que ocorreu no início de junho daquele ano. De Roma desci para Nápoles e de ferry para a linda Ilha de Capri . Em seguida fui para Siena, Firenze, Bolonha e Veneza . Deixei a moto em um estacionamento por motivos óbvios e por uns dias fui conhecer esta última. Veneza cuja arquitetura é um espetáculo, está situada sobre um arquipélago com 117 pequenas ilhas interligadas por canais e pontes. Era hora de cruzar a primeira fronteira internacional desta viagem, mas antes contornei o maior lago italiano – o Garda .

Eu não tinha equipamento adequado para pilotar moto nos Alpes Suíços . Usava calça jeans, uma jaqueta “ Califórnia Racing ” e uma bota de cano curto. A paisagem e o clima haviam mudado. Subindo pela pequena rodovia N 29 cruzei o Passo de Bernina sob chuva e com neve e gelo ao lado da pista. Aliás, era meu primeiro contato com a água em estado sólido e as montanhas imponentes cobertas com neve eram um presente para os olhos.

Cruzei a Suíça e ingressei na França . Naquela época havia a necessidade de Visto para visitar o país e muitas foram as exigências para consegui-lo ainda no Brasil . Fui obrigado e apresentar dinheiro vivo que seria usado na viagem e assinar um termo me comprometendo a regressar dentro de três meses. Para minha surpresa, os oficiais de imigração não solicitaram meu passaporte em nenhuma das quatro vezes que entrei e saí deste país com minha moto. Percorri o Vale do Loire , cruzei os Pirineus , caminhei pelas ruas de pedra de Carcassone , Visitei Versalhes e na capital fiz questão de percorrer com a moto os dois e meio quilômetros da Avenida Champs Elysees que separam o Arco do Triunfo da Praça De La Concord .

Se houve algum desafio nesta viagem foi o fato de eu não saber me comunicar em inglês e ter que achar albergues para dormir (naquele tempo eu desconhecia o prazer e a facilidade de acampar). Tal como a maioria dos jovens brasileiros que viajam para o exterior, a verba a ser gasta com comida e hospedagem é quase sempre pequena . Certa noite, na recepção do Albergue da Juventude em Sevilha - Espanha, perguntei se havia algum supermercado próximo para comprar os ingredientes para o jantar – vale mencionar que “os ingredientes” eram, invariavelmente, macarrão, molho, queijo, ovos e pão . A recepcionista disse haver um, porém, que eu deveria correr, pois fecharia dentro de 10 minutos. Escuto uma voz atrás de mim dizendo: “Me voi con ti” (“Vou com você”). Ao me virar, vejo uma senhora com cabelos brancos a me olhar.

– Desculpe, mas vou correndo.

– “Yo tambien”. (“Eu também”).

Saímos do albergue e nos pusemos a correr em direção ao supermercado . Descrente da anciã, que a qualquer momento poderia enfartar e me dar trabalho, corri moderadamente . Ela ao meu lado, como se tivesse 20 anos, ainda conversava comigo. Ao final das compras, voltamos e jantamos juntos. Contou-me que sua vida há vários anos se resumia em trabalhar e juntar dinheiro para poder viajar . Não me recordo seu nome, mas lembro que era argentina . Um dos muitos exemplos de pessoas, ainda por conhecer, que não permitiram que o acúmulo dos anos as impedissem de ter uma vida interessante.

Em Madri disseram-me que os meses de maio e junho eram os “melhores” para assistir uma tourada (seja lá o que isso podesse significar). Junto com um espanhol e duas italianas que havia conhecido no albergue, fomos a uma arena testemunhar esse “esporte” de gosto duvidoso. Ao sairmos os comentários não poderiam ser outros – Foi uma selvageria – sangue e sofrimento do pobre animal. O espanhol tentando argumentar disse que se tratava de cultura e como tal deveria ser respeitada . Uma das italianas respondeu: Sabe, era de nossa cultura atirar cristãos aos leões , mas já não fazemos mais isso.

Em Portugal conheci o lindo mosteiro de Batalha , o gigantesco palácio de Mafra , os canais de Aveiro , a bem preservada cidade medieval de Óbidos , e é claro Lisboa . No albergue desta última, conheci dois jovens brasileiros engraçadíssimos . Disseram-me – sabia que as portuguesas usam cueca? Depois de muito rirmos, saímos à rua e um deles se dirigiu a duas garotas que estavam conversando em um banco e perguntou – Não é verdade que vocês usam cueca? – Ora pois sim, respondeu a menina. Rolei de tanto rir. (Em Portugal cueca = calcinha)

Retornei à Espanha e à França e na fronteira do extremo norte dos dois países há duas cidades lindas uma ao lado da outra – San Sebastián e Saint-Jean-de-Luz respectivamente. A cidade de Calais (pronuncia-se Calé) é o ponto continental mais próximo da Inglaterra com apenas 34 km de distância pelo Canal da Manha até a cidade de Dover e foi para lá que eu fui de “ferry”.

Desnecessário comentar as trapalhadas que fiz por conta da “ mão inglesa ” O mais gozado é que além de você pilotar pela esquerda, a pista mais veloz é a da direita. A impressão que se tem é de estar fazendo tudo errado . Além disso, as placas de sinalização de distâncias são em milhas (1,6 km), o que gerava mais confusão ainda.

Passei alguns dias em Londres e segui para Cambrige , depois York e New Castle . Cansado de pilotar molhado por dias a fio devido a incessante chuva retornei a França , mais uma vez a Suíça e finalmente a Roma onde vendi a moto a um italiano e retornei ao Brasil .

Nos três meses que se passaram, pude conhecer um pouco destes países e perceber que o sonho de percorrer o mundo já não estava tão distante como antes parecia. 

 

Raphael Karan (raphael@raphaelkaran.com.br)
http://www.raphaelkaran.com.br

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