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Reinaldo Baptistucci

A chave, o cadeado e a RD

05 de March de 2009

A ideia era muito simples. Saindo de São Paulo, eu viajaria pela Rodovia Dutra até Volta Redonda e de lá entraria na impiedosa Rio-Bahia com destino a Salvador.

Um dia antes da saída, no sábado, fui até a Bienal para rever alguns motociclistas amigos e me despedir da Pâmela, que acabara de voltar de Recife com uma TX 650cc. Seria interessante saber como andavam as estradas lá por cima.

Rolava o verão de 1975, e a minha Yamaha RD 350cc estava tinindo, uma belezura de moçoila, equipada para a empreitada com esmero e muito carinho. Na bagagem levava o mínimo possível e também uma barraca de lona verde, em forma de triangulo, que havia comprado na loja Ao Gaúcho, aqui em Sampa.

Domingo, meia noite, enrolo o cabelo longo e coloco o capacete Elmo, ligo a RD e a fumaça na ponta do escape avisa que está tudo bem. Espeto a primeira e saio pipocando. Meu pai, de pijama e cachimbo na boca, me dá o último abraço e deseja boa viagem. Finalmente iria rever a estrada.

A RD tinha fama de correr muito e era verdade. Seu motor em quarta marcha, por exemplo, não tinha fim. Nas retomadas ela me jogava para trás, impressionante como andava. Porém, definitivamente ela não parava, você podia se pendurar nos freios que ela não tomava conhecimento. Não por menos que sua fama era a de ser uma autêntica Viúva Negra Matadora.

Sabendo disso, eu não enrolava o cabo. Por outro lado, era quase impossível andar devagar, pois ela embaralhava; uma gata complicada e cheia de manhas — no inverno eu tinha o costume de esquentar o motor 2T com velas B7 e depois trocar por B9, com isso eu evitava os eventuais engasgos fatais.

Já no trecho Rio-Bahia e desviando dos buracos, ia pensando em quem tinha deixado para trás: a tal da Mecânica Quântica, as infernais Integrais e Derivadas, que no momento não me serviam em absolutamente nada...

Estava a horas pilotando e o sol já caía atrás de mim. Nesse segundo dia de viagem, nada de anormal acontecera e eu em particular estava curtido muito o visual do anoitecer, mas estava na hora de parar.

Saio da BR, entro à direita e por uma estradinha de terra rodo alguns quilômetros, chegando a um pequeno povoado que está as escuras. Nem cachorro na rua tinha, fico andando a esmo até encontrar um boteco aberto. Estaciono a RD na porta e entro no dileto estabelecimento, que estava cheio de bêbados.

O cara do balcão sorri e mostra os seus últimos dois dentes com satisfação e dá um alongado boa noite, colocando na minha frente um copo com pinga amarela e um pedaço de queijo branco. Lá fora já tem gente vendo a tal bicicleta a motor.

Depois de ter tomado a penúltima, saio do boteco com a dica que no fim da rua tinha um sitio onde poderia armar minha barraca. Chego ao local e com o farol ligado monto a cabana, meto uma corrente e cadeado sarado nas bengalas e na roda dianteira, desenrolo meu saco de dormir e caio na cama com um céu cravejado de estrelas.

Amanhece chovendo forte. Como tinha parado a moto na grama, ela estava toda torta, a ponto de cair com o próprio peso. Saio da cabana e calço o pezinho, debaixo do aguaceiro desmonto a barraca, amarro as tralhas na garupa, ponho a mão na cintura, pego a chave da moto e não encontro a do cadeado. Procuro no chão e nada, desembrulho tudo e nada, abro mais uma vez a barraca e nada, passo um pente fino em tudo e nada. A maldita chave tinha desaparecido.

Forço a memória e chego à conclusão de que e a danada deveria ter ficado em cima da mesa da sala ou muito bem guardada na gaveta do armário. Que vacilo, que burrice antológica e uma série de palavrões que prefiro não reproduzir aqui.

Estava preso ali, mas com a cabeça na estrada e com a bendita da chave do cadeado em São Paulo. Fico andando em círculos em volta da moto igual a um doido varrido, nisso chega o caseiro do tal sitio com um guarda chuva cor de rosa. Mas antes que eu desse um bom dia, aos berros ele fala: “A sombrinha é da minha mulher. Posso ajudar?”.

Volto a pé para o povoado chutando as poças de água à procura do chaveiro, mas acabo encontrando o dono do boteco e seus dois dentes amarelos. Na hora chegam mais dois ou três e um quarto rapaz que já sabe do ocorrido. Vamos todos em procissão até a casa do moço das chaves e dali mais alguns se juntam ao que já parecia agora um funeral. Todos prontos para resolver a questão e, lógico, com palpites mirabolantes. Que fria e que infinita bondade daqueles que nunca me tinham visto mais gordo.

Com todos em volta da RD aprisionada, a micha entra em ação e quebra no maldito buraco do cadeado. Chega alguém com um macaco hidráulico, que também não resolve o caso. Um machado e serrote aparecem e a gozação é geral, chove barbaridade, aparece um cara com uma bicicleta caindo aos pedaços, com um arco de serra de fita toda enferrujada na mão. Vai ser com ela que vamos resolver o caso. Sim, mas ao primeiro movimento ela quebra; uma maravilha!

Nesse momento, para um caminhão enorme e desce da boleia um cidadão esquelético que vai logo dizendo: “Mandei trazer o maçarico, oito garrafas de aguardente, cinco caixas de cerveja, dez quilos de carne para assar e o sanfoneiro”.

A corrente, o cadeado e a RD estavam entrando para a literatura de Cordel com um apelo generoso a mais, um inusitado e verdadeiro Forró Pé de Serra.

A tranqueira foi cortada, a chuva parou e depois de muita festa saí dali para a estrada com uma lição a mais na minha bagagem: chave reserva pendurada no pescoço para sempre!

Reinaldo Baptistucci.

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